30 outubro, 2009
"A primeira vez que o telefone tocou ele não se moveu. Continuou sentado sobre a velha almofada amarela, cheia de pastoras desbotadas com coroas de flores nas mãos. As vibrações coloridas da televisão sem som faziam a sala tremer e flutuar, empalidecida pelo bordô mortiço da cor de luxe de um filme antigo qualquer. Quando o telefone tocou pela segunda vez ele estava tentando lembrar se o nome daquela melodia meio arranhada e lentíssima que vinha da outra sala seria mesmo “Desespero agradável” ou “Por um desespero agradável”. De qualquer forma, pensou, desespero. E agradável.
A luz de mercúrio da rua varava os orifícios das cortinas de renda misturando-se, azulada, à cor meio decomposta do filme. Pouco antes do telefone tocar pela terceira vez ele resolveu levantar-se — conferir o nome da música, disse para si mesmo, e caminhou para dentro atravessando o pequeno corredor onde, como sempre, a perna da calça roçou contra a folha rajada de uma planta. Preciso trocá-la de lugar, lembrou, como sempre. E um pouco antes ainda de estender a mão para pegar o telefone na estante, inclinou-se sobre as capas de discos espalhadas pelo chão, entre um cinzeiro cheio e um caneco de cerâmica crua quase vazio, a não ser por uns restos no fundo, que vistos assim de cima formavam uma massa verde, úmida e compacta. “Désespoir agréable”, confirmou. Ainda em pé, colocou a capa branca do disco sobre a mesa enquanto repetia mentalmente: de qualquer forma, desespero. E agradável.
— Lui? — A voz conhecida. — Alô? É você, Lui?
— Eu — ele disse.
— O que é que você está fazendo?
Ele sentou-se. Depois estendeu o braço em frente ao rosto e olhou a palma aberta da própria mão. As pequenas áreas descascadas, ácido úrico, diziam, corroendo lento a pele.
— Alô? Você está me ouvindo?
— Oi — ele disse.
Perguntei o que é que você estava fazendo?
— Fazendo? Nada. Por aí, ouvindo música, vendo tevê. — Fechou a mão. — Agora ia fazer um café. E dormir.
Hein? Fala mais alto.
— Mas não sei se tem pó.
—O quê?
— Nada, bobagem. E você?
Do outro lado da linha, ela suspirou sem dizer nada. Então houve um silêncio curto e em seguida um clique seco e uma espécie de sopro. Deve ter acendido um cigarro, ele pensou. Dobrou mecanicamente o corpo para a esquerda até trazer o cinzeiro cheio de pontas para o lado do telefone.
— Que que houve? — perguntou lento, olhando em volta à procura de um maço de cigarros.
— Escuta, você não quer dar uma saída?
— Estou cansado. Não tenho cabeça. E amanhã preciso acordar muito cedo.
— Mas eu passo aí com o carro. Depois deixo você de novo. A gente não demora nada. Podia ir a um bar, a um cinema, a um.
— Já passa das dez — ele disse.
A voz dela ficou um pouco mais aguda.
— E vir aqui, quem sabe. Também você não quer, não é? Tenho uma vodca ótima. Daquelas. Você adora, nem abri ainda. Só não tenho limão, você traz? — A voz ficou subitamente tão aguda que ele afastou um pouco o fone do ouvido. Por um momento ficou ouvindo a melodia distante, lenta e arranhada do piano. Através dos vidros da porta, com a luz acesa nos fundos, conseguia ver a copa verde das plantas no jardim, algumas folhas amareladas caídas no chão de cimento. Sem querer, quase estremeceu de frio. Ou uma espécie de medo. Esfregou a palma seca da mão esquerda contra a coxa. A voz dela ficou mais baixa quando perguntou:
— E se eu fosse até aí?
Os dedos dele tocaram o maço de cigarros no bolso da calça. Ele contraiu o ombro direito, equilibrando o fone contra o rosto, e puxou devagar o maço.
— Sabe o que é — disse.
—Lui?
Com os dentes, ele prendeu o filtro de um dos cigarros. Mordeu-o, levemente.
— Alô, Lui? Você está aí?
Ele contraiu mais o ombro para acender o cigarro. O fone quase se desequilibrou. Tragou fundo. Tornou a pegar o fone com a mão e soltou pouco a pouco o ombro dolorido soprando a fumaça.
— Eu já estava quase dormindo.
— Que música é essa aí no fundo? — ela perguntou de repente.
Ele puxou o cinzeiro para perto. Virou a capa do disco nas mãos.
— Chama-se “Por um desespero agradável” — mentiu. — Você gosta?
— Não sei. Acho que dá um pouco de sono. Quem é?
Ele bateu o cigarro três vezes na borda do cinzeiro, mas não caiu nenhuma cinza.
— Um cara aí. Um doido.
— Como ele se chama?
— Erik Satie — ele disse bem baixo. Ela não ouviu.
— Lui? Alô, Lui?
— Digue.
— Estou te enchendo o saco? — Outra vez ele escutou o silêncio curto, o clique seco e o sopro leve. Deve ter acendido outro cigarro, pensou. E soprou a fumaça.
— Não — disse.
— Estou te enchendo? Fala. Eu sei que estou.
— Tudo bem, eu não estava mesmo fazendo nada.
— Não consigo dormir — ela disse muito baixo.
— Você está deitada?
— É, lendo. Aí me deu vontade de falar com você.
Ele tragou fundo. Enquanto soprava a fumaça, curvou outra vez o corpo para apanhar
o caneco de cerâmica. Enfiou o indicador até
o fundo, depois mordiscou as folhas miúdas
com os incisivos e perguntou:
— O que é que você estava lendo?
— Nada, não. Uma matéria aí numa revista. Um negócio sobre monoculturas e sprays.
— What about?
—Hein?
— O que você estava lendo.
Ela tossiu. Depois pareceu se animar.
— Umas coisas assim, ecologias, sabe? Dizque se você só planta uma espécie de coisa na terra por muitos anos, ela acaba morrendo. A terra, não a coisa plantada, entende? Soja, por exemplo. Dizque acaba a camada de húmus. Parece que eucalipto também. Depois aos poucos vira deserto. Vão ficando uns pontos assim. Vazios, entende? Desérticos. Espalhados por toda a terra.
O disco acabou, ele não se mexeu. Depois, recomeçou.
— Assim como se você pingasse uma porção de gotas de tinta num mata-borrão — ela continuou. — Eles vão se espalhando cada vez mais. Acabam se encontrando uns com os outros um dia, entende? O deserto fica maior. Fica cada vez maior. Os desertos não param nunca de crescer, sabia?
— Sabia — ele disse.
— Horrível, não?
— E os sprays?
—O quê?
— Os sprays. O que é que tem os sprays?
— Ah, pois é. Foi na mesma revista. Diz que cada apertada que você dá assim num tubo de desodorante. Não precisa ser desodorante, qualquer tubo, entende? Faz assim ah, como é que eu vou dizer? Um furo, sabe? Um rombo, um buraco na camada de como é mesmo que se diz?
— Ozônio — ele disse.
— Pois é, ozônio. O ar que a gente respira, entende? A biosfera.
— Já deve estar toda furadinha então — ele disse.
—O quê?
— Deve estar toda furada — ele repetiu bem devagar. — A camada. A biosfera. O ozônio.
— Já pensou que horror? Você sabia dis so
Lui?
Ele não respondeu.
— Alô, Lui? Você ainda está aí?
— Estou.
— Acho que fiquei meio horrorizada. E com medo. Você não tem medo, Lui?
— Estou cansado.
Do outro lado da linha, ela riu. Pelo som, ele adivinhou que ela ria sem abrir a boca, apenas os ombros sacudindo, movendo a cabeça para os lados, alguns fios de cabelo caídos nos olhos.
— Não estou te alugando? — ela perguntou. — Você sempre dizque eu te alugo. Como se você fosse um imóvel, uma casa. Eu, se fosse uma casa, queria uma piscina nos fundos. Um jardim enorme. E ar-condicionado. Que tipo de casa você queria ser, Lui?
— Eu não queria ser casa.
- Como?
— Queria ser um apartamento.
— Sei, mas que tipo?
Ele suspirou:
— Uma quitinete. Sem telefone.
— O quê? Alô, Lui? Você não ia mesmo fazer nada?
— Um chá, eu ia fazer um chá.
— Não era café? Me lembro que você falou que ia fazer café.
— Não tem mais pó. — Ele lambeu a ponta do indicador, depois umedeceu o nariz por dentro. Então sacudiu o cinzeiro cheio de pontas queimadas e cinza. Algumas partículas voaram, caindo sobre a capa branca do disco, com um desenho abstrato no centro. Com cuidado, juntou-as num montinho sobre o canto roxo da figura central. — Nem coador de papel. E acabei de me lembrar que tenho um chá incrível. Tem até uma bula louquíssima, quer ver? Guardei aqui dentro. — Ele equilibrou o fone com o ombro e abriu a cadernetinha preta de endereços.
— Chá não tem bula — ela resmungou. Parecia aborrecida, meio infantil. — Bula é de remédio.
— Tem sim, esse chá tem. Quer ver só? — Entre duas fotos polaroid desbotadas, na contracapa da caderneta, encontrou o retângulo de papel amarelo dobrado em quatro.
— Lui? Você não quer mesmo vir até aqui? Sabe — ela tornou a rir, e desta vez ele imaginou que quase escancarava a boca, passando devagar a língua pelos lábios ressecados de cigarro —, eu acho que fiquei meio impressionada com essa história dos desertos, dos buracos, do ozônio. Lui, você acha que o mundo está mesmo no fim?
Ele desdobrou sobre a mesa o papel amarelo, ao lado das duas fotos tão desbotadas quanto as manchas redondas de xícaras quentes na madeira escura. Uma das fotos era de uma mulher quase bonita, cabelos presos e brincos de ouro em forma de rosas miudinhas. A outra era de um rapaz com blusa preta de gola em V, o rosto apoiado numa das mãos, leve estrabismo nos olhos escuros.
— Sem falar nas usinas nucleares — ele disse. E com a ponta dos dedos, do canto roxo do desenho na capa do disco, foi empurrando o montículo de cinzas por cima das formas torcidas, marrom, amarelo, verde, até o espaço branco e, por fim, exatamente sobre o rosto do rapaz da foto.
— Lui? — ela chamou inquieta. — Encontrou o negócio do tal chá?
— Encontrei.
— Você está esquisito. O que é que há?
— Nada. Estou cansado, só isso. Quer ver o que diz a bula? É inglês, você entende um pouco, não é? — Ela não respondeu. Então ele leu, dramático: —... is exceilent for ali types of nervous disorders, paranoia, schizophrenia, drugs effects, digestive problems, hornionai diseases and other disorders... — Começou a rir baixinho, divertido: — Entendeu?
— Entendi — ela disse. — É um inglês fácil, qualquer um entende. Porreta esse chá, hein? É inglês?
Ele continuou rindo:
— Chinês. Aqui embaixo diz produced in China. — Com a cinza, cobriu todo o olho estrábico do rapaz. — Drugs effects é ótimo, não é?
— Maravilhoso — ela falou. — O disco tá tocando de novo, já ouvi esse
— Tá bom — ela disse.
— Tá bom — ele repetiu. E pensou que quando começavam a falar desse jeito sempre era um sinal tácito para algum desligar. Mas não quis ser o primeiro.
— Vou tirar amanhã — ela falou de re pente.
—Hein?
— Nada. Vai fazer teu chá.
— Tá bom. Aqui diz também que tem vitamina E. — Abriu a mão e olhou as manchas branquicentas na palma. — Não é essa que é boa para a pele?
— Acho que aquela é a A. Não entendo muito de vitaminas.
— Nem eu. A C eu sei que é a da gripe, todo mundo sabe. Qual será a que cura os tais drugs effects? Cheirei todas hoje. Estou com aquele... vazio intenso, sabe como?
— Não sei. — De repente ela parecia apressada. — Vou desligar.
— Você ligou o rádio?
— Ainda não. Como é mesmo o nome dessa música?
— “Por um desespero agradável” — ele mentiu outra vez, depois corrigiu: — Não. É só “Desespero agradável”.
— Agradável?
— É, agradável. Por que não?
— Engraçado. Desespero nunca é agradável.
— Às vezes sim. Cocaína, por exemplo.
— Você só pensa nisso?
— Não, penso em fazer um chá também.
— Hein?
— Mas essa que tá tocando agora é outra, ouça. — Ele ergueu um momento o fone no ar em direção às caixas de som e ficou um momento assim, parado. — São todas muito parecidas. Só piano, mais nada. — A cinza cobria o rosto inteiro do rapaz na foto. — Essa agora chama-se “À l’occasion d’une grande peine”.
— Sei.
— É francês.
— Sei.
— Pena, dor. Não pena de galinha. Uma grande dor. Occasion acho que é ocasião mesmo. Mas podia ser passagem. Melhor, você não acha? Passagem parece quejá vai embora, que já vai passar. O que é que você acha?
— Vou ver se durmo. — Ela bocejou. — Francês, inglês, chá chinês. Você hoje está internacional demais para o meu gabarito.
— Escapismo — ele disse. E acendeu outro cigarro.
— Uma pena que você não queira mesmo sair. — A voz dela parecia mais longe. — Estou pensando em abrir mesmo aquela garrafa de vodca.
— Antes de dormir? — ele falou. — Toma leite morno, dá sono. Põe bastante canela. E mel, açúcar faz mal.
— Mal? Logo quem falando...
— Faça o que eu digo, não faça o que eu. A cinza descia pelo pescoço, quase confundida com o preto da gola. A voz dela soava um tanto irônica, quase ferina.
— Ué, agora você resolveu cuidar de mim, é?
— Vou fazer meu chá — ele disse.
— Como é mesmo que se pronuncia?
Esquizôfrenia?
— Não, é squizofrênia. Tem acento nesse e aí. E se escreve com esse, cê, agá. Depois tem também um pê e outro agá. Tem dois agás.
— E nenhum ipsilone? Nenhum dábliu? — ela perguntou como se estivesse exausta. E amarga. — Adoro ipsilones, dáblius e cás. Tão chique.
— D ‘accord — ele disse. — Mas não tem nenhum.
— Tá bom — ela riu sem vontade. Em seguida disse tchau, até mais, boa-noite, um beijo, e desligou.
Ele abriu a boca, mas antes de repetir as mesmas coisas ouviu O clique do fone sendo colocado no gancho do outro lado da cidade. O disco chegara novamente ao fim, mas antes que recomeçasse ele curvou-se e desligou o som. Em pé, ao lado da mesa, amarfanhou o papel amarelo e jogou-o no cinzeiro. Depois soprou as cinzas do rosto do rapaz. Algumas partículas caíram sobre a foto da mulher. Andou então até o pequeno corredor, curvou-se sobre a planta e com a brasa do cigarro fez um furo redondo na folha. Respirou fundo sem sentir cheiro algum. A sala continuava mergulhada naquela penumbra bordô, baça, moribunda, a almofada fosforescendo estranhamente esverdeada à luz azul de mercúrio. Ele fez um movimento em direção ao telefone. Chegou a avançar um pouco, como se fosse voltar. Mas não se moveu. Imóvel assim no meio da casa, o som desligado e nenhum outro ruído, era possível ouvir o vento soprando solto pelos telhados."
A luz de mercúrio da rua varava os orifícios das cortinas de renda misturando-se, azulada, à cor meio decomposta do filme. Pouco antes do telefone tocar pela terceira vez ele resolveu levantar-se — conferir o nome da música, disse para si mesmo, e caminhou para dentro atravessando o pequeno corredor onde, como sempre, a perna da calça roçou contra a folha rajada de uma planta. Preciso trocá-la de lugar, lembrou, como sempre. E um pouco antes ainda de estender a mão para pegar o telefone na estante, inclinou-se sobre as capas de discos espalhadas pelo chão, entre um cinzeiro cheio e um caneco de cerâmica crua quase vazio, a não ser por uns restos no fundo, que vistos assim de cima formavam uma massa verde, úmida e compacta. “Désespoir agréable”, confirmou. Ainda em pé, colocou a capa branca do disco sobre a mesa enquanto repetia mentalmente: de qualquer forma, desespero. E agradável.
— Lui? — A voz conhecida. — Alô? É você, Lui?
— Eu — ele disse.
— O que é que você está fazendo?
Ele sentou-se. Depois estendeu o braço em frente ao rosto e olhou a palma aberta da própria mão. As pequenas áreas descascadas, ácido úrico, diziam, corroendo lento a pele.
— Alô? Você está me ouvindo?
— Oi — ele disse.
Perguntei o que é que você estava fazendo?
— Fazendo? Nada. Por aí, ouvindo música, vendo tevê. — Fechou a mão. — Agora ia fazer um café. E dormir.
Hein? Fala mais alto.
— Mas não sei se tem pó.
—O quê?
— Nada, bobagem. E você?
Do outro lado da linha, ela suspirou sem dizer nada. Então houve um silêncio curto e em seguida um clique seco e uma espécie de sopro. Deve ter acendido um cigarro, ele pensou. Dobrou mecanicamente o corpo para a esquerda até trazer o cinzeiro cheio de pontas para o lado do telefone.
— Que que houve? — perguntou lento, olhando em volta à procura de um maço de cigarros.
— Escuta, você não quer dar uma saída?
— Estou cansado. Não tenho cabeça. E amanhã preciso acordar muito cedo.
— Mas eu passo aí com o carro. Depois deixo você de novo. A gente não demora nada. Podia ir a um bar, a um cinema, a um.
— Já passa das dez — ele disse.
A voz dela ficou um pouco mais aguda.
— E vir aqui, quem sabe. Também você não quer, não é? Tenho uma vodca ótima. Daquelas. Você adora, nem abri ainda. Só não tenho limão, você traz? — A voz ficou subitamente tão aguda que ele afastou um pouco o fone do ouvido. Por um momento ficou ouvindo a melodia distante, lenta e arranhada do piano. Através dos vidros da porta, com a luz acesa nos fundos, conseguia ver a copa verde das plantas no jardim, algumas folhas amareladas caídas no chão de cimento. Sem querer, quase estremeceu de frio. Ou uma espécie de medo. Esfregou a palma seca da mão esquerda contra a coxa. A voz dela ficou mais baixa quando perguntou:
— E se eu fosse até aí?
Os dedos dele tocaram o maço de cigarros no bolso da calça. Ele contraiu o ombro direito, equilibrando o fone contra o rosto, e puxou devagar o maço.
— Sabe o que é — disse.
—Lui?
Com os dentes, ele prendeu o filtro de um dos cigarros. Mordeu-o, levemente.
— Alô, Lui? Você está aí?
Ele contraiu mais o ombro para acender o cigarro. O fone quase se desequilibrou. Tragou fundo. Tornou a pegar o fone com a mão e soltou pouco a pouco o ombro dolorido soprando a fumaça.
— Eu já estava quase dormindo.
— Que música é essa aí no fundo? — ela perguntou de repente.
Ele puxou o cinzeiro para perto. Virou a capa do disco nas mãos.
— Chama-se “Por um desespero agradável” — mentiu. — Você gosta?
— Não sei. Acho que dá um pouco de sono. Quem é?
Ele bateu o cigarro três vezes na borda do cinzeiro, mas não caiu nenhuma cinza.
— Um cara aí. Um doido.
— Como ele se chama?
— Erik Satie — ele disse bem baixo. Ela não ouviu.
— Lui? Alô, Lui?
— Digue.
— Estou te enchendo o saco? — Outra vez ele escutou o silêncio curto, o clique seco e o sopro leve. Deve ter acendido outro cigarro, pensou. E soprou a fumaça.
— Não — disse.
— Estou te enchendo? Fala. Eu sei que estou.
— Tudo bem, eu não estava mesmo fazendo nada.
— Não consigo dormir — ela disse muito baixo.
— Você está deitada?
— É, lendo. Aí me deu vontade de falar com você.
Ele tragou fundo. Enquanto soprava a fumaça, curvou outra vez o corpo para apanhar
o caneco de cerâmica. Enfiou o indicador até
o fundo, depois mordiscou as folhas miúdas
com os incisivos e perguntou:
— O que é que você estava lendo?
— Nada, não. Uma matéria aí numa revista. Um negócio sobre monoculturas e sprays.
— What about?
—Hein?
— O que você estava lendo.
Ela tossiu. Depois pareceu se animar.
— Umas coisas assim, ecologias, sabe? Dizque se você só planta uma espécie de coisa na terra por muitos anos, ela acaba morrendo. A terra, não a coisa plantada, entende? Soja, por exemplo. Dizque acaba a camada de húmus. Parece que eucalipto também. Depois aos poucos vira deserto. Vão ficando uns pontos assim. Vazios, entende? Desérticos. Espalhados por toda a terra.
O disco acabou, ele não se mexeu. Depois, recomeçou.
— Assim como se você pingasse uma porção de gotas de tinta num mata-borrão — ela continuou. — Eles vão se espalhando cada vez mais. Acabam se encontrando uns com os outros um dia, entende? O deserto fica maior. Fica cada vez maior. Os desertos não param nunca de crescer, sabia?
— Sabia — ele disse.
— Horrível, não?
— E os sprays?
—O quê?
— Os sprays. O que é que tem os sprays?
— Ah, pois é. Foi na mesma revista. Diz que cada apertada que você dá assim num tubo de desodorante. Não precisa ser desodorante, qualquer tubo, entende? Faz assim ah, como é que eu vou dizer? Um furo, sabe? Um rombo, um buraco na camada de como é mesmo que se diz?
— Ozônio — ele disse.
— Pois é, ozônio. O ar que a gente respira, entende? A biosfera.
— Já deve estar toda furadinha então — ele disse.
—O quê?
— Deve estar toda furada — ele repetiu bem devagar. — A camada. A biosfera. O ozônio.
— Já pensou que horror? Você sabia dis so
Lui?
Ele não respondeu.
— Alô, Lui? Você ainda está aí?
— Estou.
— Acho que fiquei meio horrorizada. E com medo. Você não tem medo, Lui?
— Estou cansado.
Do outro lado da linha, ela riu. Pelo som, ele adivinhou que ela ria sem abrir a boca, apenas os ombros sacudindo, movendo a cabeça para os lados, alguns fios de cabelo caídos nos olhos.
— Não estou te alugando? — ela perguntou. — Você sempre dizque eu te alugo. Como se você fosse um imóvel, uma casa. Eu, se fosse uma casa, queria uma piscina nos fundos. Um jardim enorme. E ar-condicionado. Que tipo de casa você queria ser, Lui?
— Eu não queria ser casa.
- Como?
— Queria ser um apartamento.
— Sei, mas que tipo?
Ele suspirou:
— Uma quitinete. Sem telefone.
— O quê? Alô, Lui? Você não ia mesmo fazer nada?
— Um chá, eu ia fazer um chá.
— Não era café? Me lembro que você falou que ia fazer café.
— Não tem mais pó. — Ele lambeu a ponta do indicador, depois umedeceu o nariz por dentro. Então sacudiu o cinzeiro cheio de pontas queimadas e cinza. Algumas partículas voaram, caindo sobre a capa branca do disco, com um desenho abstrato no centro. Com cuidado, juntou-as num montinho sobre o canto roxo da figura central. — Nem coador de papel. E acabei de me lembrar que tenho um chá incrível. Tem até uma bula louquíssima, quer ver? Guardei aqui dentro. — Ele equilibrou o fone com o ombro e abriu a cadernetinha preta de endereços.
— Chá não tem bula — ela resmungou. Parecia aborrecida, meio infantil. — Bula é de remédio.
— Tem sim, esse chá tem. Quer ver só? — Entre duas fotos polaroid desbotadas, na contracapa da caderneta, encontrou o retângulo de papel amarelo dobrado em quatro.
— Lui? Você não quer mesmo vir até aqui? Sabe — ela tornou a rir, e desta vez ele imaginou que quase escancarava a boca, passando devagar a língua pelos lábios ressecados de cigarro —, eu acho que fiquei meio impressionada com essa história dos desertos, dos buracos, do ozônio. Lui, você acha que o mundo está mesmo no fim?
Ele desdobrou sobre a mesa o papel amarelo, ao lado das duas fotos tão desbotadas quanto as manchas redondas de xícaras quentes na madeira escura. Uma das fotos era de uma mulher quase bonita, cabelos presos e brincos de ouro em forma de rosas miudinhas. A outra era de um rapaz com blusa preta de gola em V, o rosto apoiado numa das mãos, leve estrabismo nos olhos escuros.
— Sem falar nas usinas nucleares — ele disse. E com a ponta dos dedos, do canto roxo do desenho na capa do disco, foi empurrando o montículo de cinzas por cima das formas torcidas, marrom, amarelo, verde, até o espaço branco e, por fim, exatamente sobre o rosto do rapaz da foto.
— Lui? — ela chamou inquieta. — Encontrou o negócio do tal chá?
— Encontrei.
— Você está esquisito. O que é que há?
— Nada. Estou cansado, só isso. Quer ver o que diz a bula? É inglês, você entende um pouco, não é? — Ela não respondeu. Então ele leu, dramático: —... is exceilent for ali types of nervous disorders, paranoia, schizophrenia, drugs effects, digestive problems, hornionai diseases and other disorders... — Começou a rir baixinho, divertido: — Entendeu?
— Entendi — ela disse. — É um inglês fácil, qualquer um entende. Porreta esse chá, hein? É inglês?
Ele continuou rindo:
— Chinês. Aqui embaixo diz produced in China. — Com a cinza, cobriu todo o olho estrábico do rapaz. — Drugs effects é ótimo, não é?
— Maravilhoso — ela falou. — O disco tá tocando de novo, já ouvi esse
— Tá bom — ela disse.
— Tá bom — ele repetiu. E pensou que quando começavam a falar desse jeito sempre era um sinal tácito para algum desligar. Mas não quis ser o primeiro.
— Vou tirar amanhã — ela falou de re pente.
—Hein?
— Nada. Vai fazer teu chá.
— Tá bom. Aqui diz também que tem vitamina E. — Abriu a mão e olhou as manchas branquicentas na palma. — Não é essa que é boa para a pele?
— Acho que aquela é a A. Não entendo muito de vitaminas.
— Nem eu. A C eu sei que é a da gripe, todo mundo sabe. Qual será a que cura os tais drugs effects? Cheirei todas hoje. Estou com aquele... vazio intenso, sabe como?
— Não sei. — De repente ela parecia apressada. — Vou desligar.
— Você ligou o rádio?
— Ainda não. Como é mesmo o nome dessa música?
— “Por um desespero agradável” — ele mentiu outra vez, depois corrigiu: — Não. É só “Desespero agradável”.
— Agradável?
— É, agradável. Por que não?
— Engraçado. Desespero nunca é agradável.
— Às vezes sim. Cocaína, por exemplo.
— Você só pensa nisso?
— Não, penso em fazer um chá também.
— Hein?
— Mas essa que tá tocando agora é outra, ouça. — Ele ergueu um momento o fone no ar em direção às caixas de som e ficou um momento assim, parado. — São todas muito parecidas. Só piano, mais nada. — A cinza cobria o rosto inteiro do rapaz na foto. — Essa agora chama-se “À l’occasion d’une grande peine”.
— Sei.
— É francês.
— Sei.
— Pena, dor. Não pena de galinha. Uma grande dor. Occasion acho que é ocasião mesmo. Mas podia ser passagem. Melhor, você não acha? Passagem parece quejá vai embora, que já vai passar. O que é que você acha?
— Vou ver se durmo. — Ela bocejou. — Francês, inglês, chá chinês. Você hoje está internacional demais para o meu gabarito.
— Escapismo — ele disse. E acendeu outro cigarro.
— Uma pena que você não queira mesmo sair. — A voz dela parecia mais longe. — Estou pensando em abrir mesmo aquela garrafa de vodca.
— Antes de dormir? — ele falou. — Toma leite morno, dá sono. Põe bastante canela. E mel, açúcar faz mal.
— Mal? Logo quem falando...
— Faça o que eu digo, não faça o que eu. A cinza descia pelo pescoço, quase confundida com o preto da gola. A voz dela soava um tanto irônica, quase ferina.
— Ué, agora você resolveu cuidar de mim, é?
— Vou fazer meu chá — ele disse.
— Como é mesmo que se pronuncia?
Esquizôfrenia?
— Não, é squizofrênia. Tem acento nesse e aí. E se escreve com esse, cê, agá. Depois tem também um pê e outro agá. Tem dois agás.
— E nenhum ipsilone? Nenhum dábliu? — ela perguntou como se estivesse exausta. E amarga. — Adoro ipsilones, dáblius e cás. Tão chique.
— D ‘accord — ele disse. — Mas não tem nenhum.
— Tá bom — ela riu sem vontade. Em seguida disse tchau, até mais, boa-noite, um beijo, e desligou.
Ele abriu a boca, mas antes de repetir as mesmas coisas ouviu O clique do fone sendo colocado no gancho do outro lado da cidade. O disco chegara novamente ao fim, mas antes que recomeçasse ele curvou-se e desligou o som. Em pé, ao lado da mesa, amarfanhou o papel amarelo e jogou-o no cinzeiro. Depois soprou as cinzas do rosto do rapaz. Algumas partículas caíram sobre a foto da mulher. Andou então até o pequeno corredor, curvou-se sobre a planta e com a brasa do cigarro fez um furo redondo na folha. Respirou fundo sem sentir cheiro algum. A sala continuava mergulhada naquela penumbra bordô, baça, moribunda, a almofada fosforescendo estranhamente esverdeada à luz azul de mercúrio. Ele fez um movimento em direção ao telefone. Chegou a avançar um pouco, como se fosse voltar. Mas não se moveu. Imóvel assim no meio da casa, o som desligado e nenhum outro ruído, era possível ouvir o vento soprando solto pelos telhados."
29 outubro, 2009
Um barquinho furado num rio de lágrimas. Poderia ser mais uma história trágica. O barco. As lágrimas. E eu poderia muito bem agir de forma contrária, poderia causar uma revolução imensa na minha aparência, trataria de agir para que conseguisse chocar as pessoas, mas não, é mais fácil nos projetar em objetos, em cartas, em personagens, embora real é menos cruel. Pensando bem não deveria ser. Muda - de mudança.
Eu furada num rio de lágrimas.
Eu furada num rio de lágrimas.
Ah, Florence
Não sei, quando ouço essa música parece que tudo vai explodir, quando imagino o violino indo e vindo nas mãos dele, os cabelos ruivos de Florence dançando sobre a cortina, vestidos armados com direito a punhos esticados na leveza do vento, nas paredes acobreadas, nos tímpanos do jovem orfão sentado na primeira cadeira que não entende porcaria nenhuma de música e acha divertido os tambores ao encontro das mãos, como se fosse mais uma manisfestação fora de época em Salvador. Essa talvez seja uma das melodias mais bonitas que já ouvi, pelo menos é a que me dá mais vontade de sair anunciando meu espetáculo, armar um palco na rua e gritar minha vontade de fugir, chamar a minha platéia :
O SHOW COMEÇOU!
Ah, essa vontade que tenho, não nasci pra mim, não sou de ninguém, o mundo me tem e eu tenho a mim, tenho essa vontade de tudo ter e nada poder e continuo me tendo, e isso basta. Já fui de muitos em muitos tempos, e os tempos são outros. Ah, esse amor cósmico, Florence, eu continuo no meu mundo intatco, mais do que nunca meu. Nasci pro mundo, pro amor, pra dor, e me faço tudo. Sou tudo.
... E sou o pássaro por entre os dedos.
23 outubro, 2009
Brinca, brinda, finda
Ela é uma bonequinha ferida,
Relembrando contos do passado,
Entonados e saudosos
Se expõe livre, caindo da realidade
A antimonotonia em sua cabeça
...
A antimonotonia em seus lábios
Expõe em si caindo em mim
Seus laços de fita, a ansiedade floral,
Essa calma não lida, aquela vontade degradê
A amplidão chacoalha os cachos,
Meus imaginários abraços pela cintura
Uma corda ligada ao dorso,
Contando em passos as quedas súbitas,
As pernas curtas, os seios justos,
O pescoço banhado, enfeites em coro
Matenho o sonho de despir,
É um sabor sexual, contorna os dedos tensos
Meu leve soprar de dentes molhados
Ela é uma bonequinha de honra - em si - conflitante,
Devora em vontade o êxtase do corpo,
Que brinca, que brinda, que finda.
Expõe em si caindo em mim
Seus laços de fita, a ansiedade floral,
Essa calma não lida, aquela vontade degradê
A amplidão chacoalha os cachos,
Meus imaginários abraços pela cintura
Uma corda ligada ao dorso,
Contando em passos as quedas súbitas,
As pernas curtas, os seios justos,
O pescoço banhado, enfeites em coro
Matenho o sonho de despir,
É um sabor sexual, contorna os dedos tensos
Meu leve soprar de dentes molhados
Ela é uma bonequinha de honra - em si - conflitante,
Devora em vontade o êxtase do corpo,
Que brinca, que brinda, que finda.
22 outubro, 2009
Meu telescópio de vidro fosco
Eu vi, o vento sobre os cabelos negros,
como um pássaro que bate asas quebradas,
tenta um vôo falho e só consegue andar depressa
sobre frágeis pernas mancas, depenado,
um pássaro carente e silencioso, lindo.
Eu vi, os cabelos negros desapareciam no
horizonte como uma formiga que segue a rota
em linha reta parando a cada milésimo com a cabeça
inclinada para o chão, seguindo tranquilamente
a um ponto mórbido até ser surpreendida por uma
força maior em seu corpo minuscioso.
Eu vi (?)
Creio que não, mas talvez quisesse ver.
Sintomas em vício
As seis da manhã cabeça gira,
o corpo para e a língua entra em transe,
mas não transa.
Os olhos ardem, vermelhos fogo, as mãos parecem
dançar sem ritmo sobre o colchão suado de quarenta graus,
pernas travadas, boca seca, dentes amarelos, nós no cabelo,
pele áspera, agonia e angústia.
Os cotovelos num compasso rítmico pediam
ajuda as paredes, escorriam até o chão
junto a voz surrada de curto alcance,
até cansar, por horas,
mergulhada nas cortinas geladas do castelo de prazeres.
20 outubro, 2009
Hóspede.
Hospedeiro em si das drogas injetáveis,
em vários outros ângulos. (___________)
Quem diria, manualmente, fazendo os n...neu..
Fazendo os neurotransmissores explodirem!
Os níveis de inteligência caíram a zero,
seu cérebro encontra-se azul com pigmentos esverdeados,
a euforia é minha heroína, estou bem, não injeto,
sou objeto, e me infesto de resto, contesto...
O contexto.
Hospedeiro em si das drogas injetáveis,
em vários outros ângulos. (___________)
Quem diria, manualmente, fazendo os n...neu..
Fazendo os neurotransmissores explodirem!
Os níveis de inteligência caíram a zero,
seu cérebro encontra-se azul com pigmentos esverdeados,
a euforia é minha heroína, estou bem, não injeto,
sou objeto, e me infesto de resto, contesto...
O contexto.
17 outubro, 2009
Falta de mar
14 outubro, 2009
Sede
Todos os olhares são efêmeros,
os olhares, os amores, os pedidos, os abraços, os beijos...
Longe do limite, da estética ou da moral,
longe do normal.
Te comendo, te bebendo, delirando...
(Salivando)
Toda comida estragada, todo beijo salgado,
as ondas que fazem os corpos livres...
(Nos despir)
Areia gelada, água quente, oito minutos
em luz de sol, mas era noite,
entreolhares (A sede e o copo)
Sede de beber e sede de lamber,
até vento excita (Risos)
Criamos nossos vícios, nossa sorte,
nossa vida e nossa morte.
Existe o confronto de não procurar
a saída, conforme o embalar da dança
existe a certeza das vontades permitidas.
os olhares, os amores, os pedidos, os abraços, os beijos...
Longe do limite, da estética ou da moral,
longe do normal.
Te comendo, te bebendo, delirando...
(Salivando)
Toda comida estragada, todo beijo salgado,
as ondas que fazem os corpos livres...
(Nos despir)
Areia gelada, água quente, oito minutos
em luz de sol, mas era noite,
entreolhares (A sede e o copo)
Sede de beber e sede de lamber,
até vento excita (Risos)
Criamos nossos vícios, nossa sorte,
nossa vida e nossa morte.
Existe o confronto de não procurar
a saída, conforme o embalar da dança
existe a certeza das vontades permitidas.
10 outubro, 2009
Dona dor e os dois amores
00:00
Fecharei o olho e levarei os dedos a alguma página do livro,
relembrando outros tempos.
Página oitenta e cinco.
" É de porque
que se faz
rei de insucesso absoluto
muito nada
muito mesmo
até onde anda a onda
doces de água e sal
azul ao sul
interrogação?
letra de são salvador
tradição de sal
pêlos belos de sansão
pilares de força
exclame!
a escama do peixe adormecido
expõe poesia
idem ao ou. "
Lembro da fofura engasgada na garganta.
Um tecido áspero repleto de pêlos,
entrelaçando meu braço.
Minha pele agora automaticamente tem cheiro
de papel, meu vício, dormir numa cama de livros.
relembrando outros tempos.
Página oitenta e cinco.
" É de porque
que se faz
rei de insucesso absoluto
muito nada
muito mesmo
até onde anda a onda
doces de água e sal
azul ao sul
interrogação?
letra de são salvador
tradição de sal
pêlos belos de sansão
pilares de força
exclame!
a escama do peixe adormecido
expõe poesia
idem ao ou. "
Lembro da fofura engasgada na garganta.
Um tecido áspero repleto de pêlos,
entrelaçando meu braço.
Minha pele agora automaticamente tem cheiro
de papel, meu vício, dormir numa cama de livros.
Fraco
O segredo e o fato sincero
te gosto muito mesmo
desgostos preferidos :
- um olho vazio de vidro de pirata
- dois dias sem ouvir a voz
- três dias e não ter vez
- quatro noites e esquecer o tom
- cinco dedos a tapar o outro olho
- cinco mais cinco são os restos
- dez séculos sem aquele grão de areia
QUE ME ARDE AS VISÕES CALMAS
Uma PeDra DE AÇÚCAR em muitas LáGRImas
te gosto muito MESMO
não ignore minha magreza
o pálido recolher-se até a secura
Uma Praga Doce Feita Com O Vinagre
O G-E-S-T-O CORTANTE e o N-A-D-A.
Sérgio Blank
te gosto muito mesmo
desgostos preferidos :
- um olho vazio de vidro de pirata
- dois dias sem ouvir a voz
- três dias e não ter vez
- quatro noites e esquecer o tom
- cinco dedos a tapar o outro olho
- cinco mais cinco são os restos
- dez séculos sem aquele grão de areia
QUE ME ARDE AS VISÕES CALMAS
Uma PeDra DE AÇÚCAR em muitas LáGRImas
te gosto muito MESMO
não ignore minha magreza
o pálido recolher-se até a secura
Uma Praga Doce Feita Com O Vinagre
O G-E-S-T-O CORTANTE e o N-A-D-A.
Sérgio Blank
Súbitos contos - Parte I
Sentado a beira de um canteiro de flores murchas,
dedos trêmulos banhados a brisa fria de uma manhã
laranja, aos dezessete anos leva uma vida boemia, pequeno
estudante de si e da vida escorrida pelos dias
em que passara admirando as cores por entre os ângulos.
Em volta, na grama acobreada um isqueiro e cigarros
amassados de um bolso rasgado, uma carta com letras
tremidas e marcas de suor, encarava sozinho a realidade
clara cegando seus pesamentos, olhava para o outro lado
e via uma chave, a que decodificava seu baú de lençóis
de noites passadas, mas eram apenas os papéis que ele guardara
das noites que o marcavam, com tinta e lâmina.
Com o olhar perturbado tentava encontrar na inquietação
das lembranças uma maneira de fugir daquele espaço tão
sufocante. Sufocante era a sensação mágica de ser livre,
logo afrente as estradas, um breve sonho pode ter pernas
e caminhar até onde quiser, e ele o fez.
Caminhando em linha reta numa estrada totalmente
sua, sua e só. Só e breve, incolor. Ficara louco
em pouco tempo, tantas árvores e jardins, animais
inexistentes e uma ânsia compulsiva e voraz de
aninhar em si tudo o que veria em volta,
das pedras as pétalas. O sentir já não fazia parte,
tudo o que contava e era necessário se resumia
nos passos que ele ainda iria dar... Até lugar nenhum,
lugar dele, felicidade alugada e passageira.
A fome de cigarros havia passado, pudera,
os cigarros acabaram nos primeiros cinco minutos
de andança. Se contentou então com a ideia exuberantemente
sórdida e brilhante de fumar-lhe os dedos,
se deliciando com o vapor da carne estragada
que ele viera maltratando por tanto tempo.
- Delícia de sabor!
Escorregava a frase por
entre os dentes amarelados.
- De que me serve as pessoas se estou tão bem
aqui, vagando no dia escuro em plena
manhã? E as minhas perguntas certamente tem respostas,
ou não sejam perguntas e sim ilusões, como esta agora.
E continuou andando sobre a névoa
que se formava num espaço que ele nunca imaginou conhecer,
algo que parte de um desenho e permanece no papel.
Ele poderia descrever pra si...
- Eu vejo, os galhos secos daquela árvore,
saboroso fruto podre que fazia moradia de fungos
no chão, uma cor amarelada, não tão bonita quanto
o amarelo das folhas de meus livros. De letras agora
só tenho as vomitadas da carta, vomitadas no
literal, os besouros de ar não me fizeram bem.
Pensava assustado, se fazendo a mesma pergunta:
- Será que estou a pensar alto? Não sei,
de repente acho que os pensamentos saltaram
de mim ecoando no ar, mas nem percebi, e tanto faz,
nunca soube de jardins mortos ouvintes.
Tempos depois ainda andando sobre a admiração
de Natureza morta, viva para ele, parou. Já
não mantinha consciência sóbria, tanto percebia
as flores se movimentarem como achava que elas
tinham vida e poderiam conversar com ele.
Num piscar de olhos sentou-se sobre um colchão
de grama não cortada, repleta de folhas secas,
herança do Outono que passara rápido.
Olhou atento para a flor que parecia mais
uma folha recortada e suja, dobrada em mil partes
e com odor de rato morto. Com o mais lindo
sorriso amarelo de contentamento ele a olhou
por um longo tempo, esticado ao chão, se desprendendo
do isqueiro na mão que trazia desde o início
fumando os dedos.
- Olá, flor! És o mais bonito tom amarelado,
essas rugas tuas em breve marcarão meu rosto também,
e, sinto que estou bem, agora a pouco me apaixonei
por um banco enferrujado no meio da estrada. Sabe,
ele parecia muito comigo, nossa utilidade teve
validade. (Silêncio). Sabe, se quiser, pode me chamar
de Mathias, não me incomodo, também não me incomodo
em tentar lembrar qual realmente era a minha inteção
hoje pela manhã.
Ainda tonto de tantas informações Mathias
levantou-se com cuidado e derramou uma gota
de seu suor sobre a flor.
Seguindo ainda a linha reta, dia cinza permanente,
roupas rasgadas e carta em um centímetro. Os dedos
já eram irreconhecíveis, não havia mais necessidade
de carne e vapor naquele momento. E, tanto fez,
ele continuava a andar e a ouvir o falar
das àrvores sem folhas, dos bancos enferrujados,
das flores murchas, já estava longe, feliz
e sozinho. Pelo menos as lembranças não morrem,
e não há final na história. Mathias continuou
vagando ébrio e estranhamente feliz,
de súbito, numa tomada de loucura agiu impulsivamente
para um mundo translúcido.
Continua...
dedos trêmulos banhados a brisa fria de uma manhã
laranja, aos dezessete anos leva uma vida boemia, pequeno
estudante de si e da vida escorrida pelos dias
em que passara admirando as cores por entre os ângulos.
Em volta, na grama acobreada um isqueiro e cigarros
amassados de um bolso rasgado, uma carta com letras
tremidas e marcas de suor, encarava sozinho a realidade
clara cegando seus pesamentos, olhava para o outro lado
e via uma chave, a que decodificava seu baú de lençóis
de noites passadas, mas eram apenas os papéis que ele guardara
das noites que o marcavam, com tinta e lâmina.
Com o olhar perturbado tentava encontrar na inquietação
das lembranças uma maneira de fugir daquele espaço tão
sufocante. Sufocante era a sensação mágica de ser livre,
logo afrente as estradas, um breve sonho pode ter pernas
e caminhar até onde quiser, e ele o fez.
Caminhando em linha reta numa estrada totalmente
sua, sua e só. Só e breve, incolor. Ficara louco
em pouco tempo, tantas árvores e jardins, animais
inexistentes e uma ânsia compulsiva e voraz de
aninhar em si tudo o que veria em volta,
das pedras as pétalas. O sentir já não fazia parte,
tudo o que contava e era necessário se resumia
nos passos que ele ainda iria dar... Até lugar nenhum,
lugar dele, felicidade alugada e passageira.
A fome de cigarros havia passado, pudera,
os cigarros acabaram nos primeiros cinco minutos
de andança. Se contentou então com a ideia exuberantemente
sórdida e brilhante de fumar-lhe os dedos,
se deliciando com o vapor da carne estragada
que ele viera maltratando por tanto tempo.
- Delícia de sabor!
Escorregava a frase por
entre os dentes amarelados.
- De que me serve as pessoas se estou tão bem
aqui, vagando no dia escuro em plena
manhã? E as minhas perguntas certamente tem respostas,
ou não sejam perguntas e sim ilusões, como esta agora.
E continuou andando sobre a névoa
que se formava num espaço que ele nunca imaginou conhecer,
algo que parte de um desenho e permanece no papel.
Ele poderia descrever pra si...
- Eu vejo, os galhos secos daquela árvore,
saboroso fruto podre que fazia moradia de fungos
no chão, uma cor amarelada, não tão bonita quanto
o amarelo das folhas de meus livros. De letras agora
só tenho as vomitadas da carta, vomitadas no
literal, os besouros de ar não me fizeram bem.
Pensava assustado, se fazendo a mesma pergunta:
- Será que estou a pensar alto? Não sei,
de repente acho que os pensamentos saltaram
de mim ecoando no ar, mas nem percebi, e tanto faz,
nunca soube de jardins mortos ouvintes.
Tempos depois ainda andando sobre a admiração
de Natureza morta, viva para ele, parou. Já
não mantinha consciência sóbria, tanto percebia
as flores se movimentarem como achava que elas
tinham vida e poderiam conversar com ele.
Num piscar de olhos sentou-se sobre um colchão
de grama não cortada, repleta de folhas secas,
herança do Outono que passara rápido.
Olhou atento para a flor que parecia mais
uma folha recortada e suja, dobrada em mil partes
e com odor de rato morto. Com o mais lindo
sorriso amarelo de contentamento ele a olhou
por um longo tempo, esticado ao chão, se desprendendo
do isqueiro na mão que trazia desde o início
fumando os dedos.
- Olá, flor! És o mais bonito tom amarelado,
essas rugas tuas em breve marcarão meu rosto também,
e, sinto que estou bem, agora a pouco me apaixonei
por um banco enferrujado no meio da estrada. Sabe,
ele parecia muito comigo, nossa utilidade teve
validade. (Silêncio). Sabe, se quiser, pode me chamar
de Mathias, não me incomodo, também não me incomodo
em tentar lembrar qual realmente era a minha inteção
hoje pela manhã.
Ainda tonto de tantas informações Mathias
levantou-se com cuidado e derramou uma gota
de seu suor sobre a flor.
Seguindo ainda a linha reta, dia cinza permanente,
roupas rasgadas e carta em um centímetro. Os dedos
já eram irreconhecíveis, não havia mais necessidade
de carne e vapor naquele momento. E, tanto fez,
ele continuava a andar e a ouvir o falar
das àrvores sem folhas, dos bancos enferrujados,
das flores murchas, já estava longe, feliz
e sozinho. Pelo menos as lembranças não morrem,
e não há final na história. Mathias continuou
vagando ébrio e estranhamente feliz,
de súbito, numa tomada de loucura agiu impulsivamente
para um mundo translúcido.
Continua...
09 outubro, 2009
Ainda ébrio
Vamos nos explodir, infectar as calçadas e avenidas,
transmitir doenças incuráveis,
perder os sentidos e decaptar as ilusões...
Somada mais uma depois dessa declaração.
Declarar (?)
É o que eu tenho feito há tempos.
transmitir doenças incuráveis,
perder os sentidos e decaptar as ilusões...
Somada mais uma depois dessa declaração.
Declarar (?)
É o que eu tenho feito há tempos.
06 outubro, 2009
05 outubro, 2009
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres
Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável.
Mas ah, a falta de sede. Não havia senão faltas e ausências.
E nem ao menos a vontade.
Só farpas sem pontas salientes por onde
serem pinçadas e extirpadas.
Só os dentes estavam úmidos.
Dentro de uma boca voraz e ressequida
os dentes úmidos mas duros - e sobretudo a boca
voraz para nada.
E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada pelo planeta Marte.
Clarice Lispector
Mas ah, a falta de sede. Não havia senão faltas e ausências.
E nem ao menos a vontade.
Só farpas sem pontas salientes por onde
serem pinçadas e extirpadas.
Só os dentes estavam úmidos.
Dentro de uma boca voraz e ressequida
os dentes úmidos mas duros - e sobretudo a boca
voraz para nada.
E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada pelo planeta Marte.
Clarice Lispector
Eu (também) pedi as contas
De hoje espero (?)
Ou não, talvez seja o enterro
das memórias e entreolhares
mortos (afogados).
É como jogar uma moeda para o alto e vê-la explodir ao tocar
numa lâmpada verde, a única diferença é que ao voltar tudo acompanha,
teto, lâmpada, eletricidade e moeda, no meu rosto.
Admito que não é uma sensação
muito boa receber tanto carinho da física, sem química.
É, falta a química.
E... você... pode ver as paredes caindo?
Ou não, talvez seja o enterro
das memórias e entreolhares
mortos (afogados).
É como jogar uma moeda para o alto e vê-la explodir ao tocar
numa lâmpada verde, a única diferença é que ao voltar tudo acompanha,
teto, lâmpada, eletricidade e moeda, no meu rosto.
Admito que não é uma sensação
muito boa receber tanto carinho da física, sem química.
É, falta a química.
E... você... pode ver as paredes caindo?
03 outubro, 2009
Três pratos
Quais certezas você vai me dar se eu ficar? (Tempo)
Não, não precisa responder,
eu sei que elas não durarão muito, e você sabe...
Não sabe? Sabe. O aqui é o agora,
tanto podemos nos curvar ou nos manter
eretos olhando os olhos do mundo, com os nossos fechados.
Falo com clareza do amanhã, e ele é incerto,
mesmo com os planos e curvas ligando os acertos e declínios,
e é assim, vivemos no hoje planejando o amanhã
que pode ser completamente diferente,
e se não for ao menos vai haver atraso
nos segundos que a gente marcou.
Claro que não penso que amanhã deixarei de amar,
até porquê demorei tanto pra me firmar no
sentimento que não me vejo o deixando de uma hora pra outra,
então, trago comigo as duas certezas lógicas
que antes se resumiam em apenas uma.
Como numa apresentação de elenco admirem:
A morte e o Amor (à primavera). São minhas duas certezas,
por toda a vida, e pode ser um juramento, uma prova,
uma promessa (igual).
É real, mágico e descrente de semelhança,
infinitamente desgastante a partida num desencontro
casual de meras expectativas frustradas e noites de nuvens claras,
conversas e conversas aleatórias e findas no chão,
misturadas a areia e sem verdade (entendo).
Pudeste ver o brilho nos meus olhos?
Eles podiam saltar do meu rosto e cantar alegremente ao lado
do lixo junto ao gato de rua procurando comida (Ai, que fome!).
A explicação de tudo isso... Bem, não há.
E com todas as diferenças (iguais)
eu estou ereta diante das certezas,
falando com os olhos e sentindo o vento que passa por tudo
e para em mim.
Estou certa, nas idas e vindas,
um amor de três flores brotará aqui dentro
todos os dias, de chuva ou sol,
mesmo cobertos de neve as lembranças são mais quentes.
Mesmo eu (gato de rua) posso sentir o gosto doce daqui,
o gosto de amor recém preparado,
aquele que deixa a marca no prato depois de saboreado.
É que...
Não, depois eu...
Sim, eu quero ficar e...
Não, mas eu vou e...
É, eu vou deixar e...
Amar.
Não, não precisa responder,
eu sei que elas não durarão muito, e você sabe...
Não sabe? Sabe. O aqui é o agora,
tanto podemos nos curvar ou nos manter
eretos olhando os olhos do mundo, com os nossos fechados.
Falo com clareza do amanhã, e ele é incerto,
mesmo com os planos e curvas ligando os acertos e declínios,
e é assim, vivemos no hoje planejando o amanhã
que pode ser completamente diferente,
e se não for ao menos vai haver atraso
nos segundos que a gente marcou.
Claro que não penso que amanhã deixarei de amar,
até porquê demorei tanto pra me firmar no
sentimento que não me vejo o deixando de uma hora pra outra,
então, trago comigo as duas certezas lógicas
que antes se resumiam em apenas uma.
Como numa apresentação de elenco admirem:
A morte e o Amor (à primavera). São minhas duas certezas,
por toda a vida, e pode ser um juramento, uma prova,
uma promessa (igual).
É real, mágico e descrente de semelhança,
infinitamente desgastante a partida num desencontro
casual de meras expectativas frustradas e noites de nuvens claras,
conversas e conversas aleatórias e findas no chão,
misturadas a areia e sem verdade (entendo).
Pudeste ver o brilho nos meus olhos?
Eles podiam saltar do meu rosto e cantar alegremente ao lado
do lixo junto ao gato de rua procurando comida (Ai, que fome!).
A explicação de tudo isso... Bem, não há.
E com todas as diferenças (iguais)
eu estou ereta diante das certezas,
falando com os olhos e sentindo o vento que passa por tudo
e para em mim.
Estou certa, nas idas e vindas,
um amor de três flores brotará aqui dentro
todos os dias, de chuva ou sol,
mesmo cobertos de neve as lembranças são mais quentes.
Mesmo eu (gato de rua) posso sentir o gosto doce daqui,
o gosto de amor recém preparado,
aquele que deixa a marca no prato depois de saboreado.
É que...
Não, depois eu...
Sim, eu quero ficar e...
Não, mas eu vou e...
É, eu vou deixar e...
Amar.
01 outubro, 2009
Longa primavera
Precisamos de intervalos,
curtos intervalos de dias ou semanas...horas.
Ouvimos os silêncios de nossas relações, sentindo
falta e sem fazer força pra lembrar,
muito menos para querer apagar.
Precisamos de tempo, eu entendo, tarde mas entendo.
E sei (agora) que a neve se forma nesses pequenos intervalos,
uma pequena camada que reveste os ângulos mas que derrete
quando os sorrisos se encontram no raiar do sol, à espera.
Haverão os desencontros,
as conversas fiadas de meio dia à meia noite,
meia lua e três corpos.
Melodias virão, espera e ama, espera, ama.
Vivemos por enquanto por nós mesmos, nos dias nossos e só
nossos (por enquanto) precisando respirar nossas confissões e estimular as saudades,
quantas... Pois é, de se entregar, amar de amor, na primavera mais longa. Eu amo!
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